segunda-feira, 14 de julho de 2008

Ruy Belo, sempre

O Girassol de Rio de Onor
Existe juro um girassol em rio de onor
mais importante por exemplo para mim que seja lá quem for
Eu vi hoje na andaluzia o girassol de rio de onor
à beira de uma estrada pouco antes de chegar a fernan nuñez
(Amigos que passais em direcção a córdova ou aos cobres de
lucena
dai-me notícias desse girassol menos brilhante sol
mas bem mais acessível pelo menos para nós que não temos raízes
mas pomos o que temos sobre a terra)
Reconheci-o logo embora há muitos anos o não visse
além de o conhecer sabia ser ele natural de rio de onor
e lá habitualmente residente
É ele raios o partam disse idênticas as pétalas igual a cor
é ele ó céus é ele sem tirar nem pôr
o meu amigo girassol de rio de onor
(é fácil ter na flor um verdadeiro amigo
se o não sabíeis antes desde agora que o sabeis)
Era mesmo era ele sem tirar nem pôr
o girassol de rio de onor há tantos anos visto
Mas nós os que lá fomos e por lá passámos
nós é que já não somos quem lá fomos
e muito menos nós que somos vivos menos os mesmos somos
que tu ó meu amigo com as tuas
duas pernas pendentes lá da ponte sobre o rio
pequena ponte e diminuto rio
a dois passos dos olhos tão redondos que solares
dessas duas ou três quatro no máximo crianças
(meu deus essas crianças onde é hoje o seu país?)
Viajo pela espanha mas é este julgo juro o girassol
pois embora não esteja em portugal
não há ainda julgo plantas nacionais
e além disso aquela terra é meio espanhola
Mas nós que assim passamos pelos campos pelos dias
nós que não temos nem nunca tivemos
coisa pequena como uns palmos de país
pomos tudo o que somos nestes seres que passamos
e nos fixamos só em certas fotografias que tiramos
Era aquele julgo juro o girassol de há anos
mas nós que como sombras por aqui passamos
porventura seremos os que éramos há anos?
Qual é ao certo o nosso verdadeiro país?
Lanço a pergunta aos verdes campos outonais da andaluzia
mas esta paisagem que tanto me diz
quem sou isso é que ela nem ninguém mo diz
RUY BELO - Antologia Poética

Paisagem


Retrato

Entrudo

Chega o Entrudo. Mascaram-se os rostos com pontos em cruz. Pelas ruas, saltos chocalheiros sugerem-me foliões de outros Brasis. Vestidos de ponto em branco, alguns caretos porfiam com Veneza os seus melhores fatos. Detive esta fiandeira mais a senhorita fina que a acompanhava. Achei graça aos seus trejeitos, mas não gastei muito tempo a adivinhar-lhe os sexos… Há certas coisas a que temos de nos habituar no Entrudo, sob pena de o não desfrutarmos, e uma delas é a inversão das normas dos homens. O que sim me fascinou foi a simplicidade das máscaras de renda, a naturalidade da estúrdia sem samba, a girândola de cores sem gôndolas, a pândega dos pobres donos do mundo por um dia. Neste ponto reside a grande diferença entre Carnaval e Entrudo: tem, este último, na banda larga da paródia onde cada um é quem quer, a singeleza no fingir que só alguns conseguem… (LP)

Picar a gadanha



Pude vê-lo quando passeava pelo campo. Estava curvado sobre o gadanho e impassível, ao sol escaldante da tarde, concentrado apenas naquilo que fazia.
Focalizo o motivo. O gesto de amolar o metal retorna ao gesto, e a partir daí os mesmos gestos repetidos, monocórdicos, sem fim.
Disparo o botão. A mão que entalha o gesto atinge o seu destino: pára de me surpreender ao fim de algum tempo e apenas deixa mossa sobre o ferro. Basta multiplicar as coisas para estas perderem poesia… Em sentido contrário uma foto transmite melhor esta ideia ao passar a escrito a intensidade de um momento. Guardo a máquina. Suponho que nem me viu. Em instante algum levantou os olhos da bigorna. E lá continua, no seu martelar dolente, sob o sol de cobre das três da tarde, a sonhar com culturas desmedidas, de os olhos fixos na claridade rija do metal… (LP)

Toca-me o gado, em Rio de Onor

De vez em quando o tio Mariano vem demonstrar-nos até que ponto andamos enganados. Pensávamos nós que a vida de pastor era um andar constante de monte em monte, e eis que ele descobre, à beira da aldeia, um sítio à medida para pastar o gado. Soube há dias que lhe calharia a vela do gado no dia da festa; e, vai daí, fez coincidir a festa, e a sua vez na roda, com a semana da recolha das culturas das hortas. Novidades colhidas, a faceira é um torrão de fartura verde, tal qual uma cópia do jardim do Éden. Imaginem-no, pois, vestido de Domingo a acurralar ovelhas, bem juntinho ao baile e a não perder pitada da festa. Mas como foi que nunca nos lembrámos de fazer o mesmo? Que burros fomos! … Anda que para o ano já estamos de atalaia e não ficas tu com o anelzinho…